A Botica do século XVII
A vizinhança da Botica com a Enfermaria deve-se, sobretudo, à necessidade de administração de remédios em tempo sucessivo à sua produção, conforme a prática da medicina galénica. Por outro lado, o local para a prática de sangrias, tão comum nos tratamentos de enfermos até aos finais do século XVIII, tinha geralmente lugar no espaço adstrito à botica. Era, por isso, corolário que as dependências da botica ficassem contíguas às da enfermaria conventual. Esta, de acordo com a regra de São Bento, estaria geralmente na parte leste do complexo monástico.
Internamente estes edifícios dispõem-se virados para um pátio triangular formado por parte da fachada sul da Enfermaria, pela fachada poente da Botica e pelo dorso das paredes norte dos claustros da Lavagem e Cemitério.
A intersecção do edifício da Botica com o da Enfermaria no ângulo norte nascente, ressalta do resto do edificado pelo seu aspecto de torreão, com dois enormes frontões a anunciar o advento do barroco a Portugal. Internamente, este cunhal aloja uma grande sala aonde vão dar os corredores da Enfermaria e da Botica. Esta sala tem três enormes janelas que lhe permitem receber directamente a primeira luz matutina durante todo o ano. Tal circunstância faz deste espaço o local mais propício para a prática de intervenções cirúrgicas. Na gíria popular, herdada dos tempos em que foi o salão nobre do Hospital Militar, esta sala ficou conhecida como Sala dos Cavaleiros.
A casa da Botica é composta por quatro grandes salas servidas por um corredor lateral por onde comunica com a Enfermaria. Uma antecâmara triangular faz a articulação entre a primeira das salas da Botica, ainda no enfiamento das celas da Enfermaria, e as três restantes que se estendem para sudeste. Duas destas salas eram providas de chaminé, o que indicia o uso do fogo para a elaboração de certos preparados medicinais. Na entrada da primeira sala, está uma lápide encimando a porta com a data de 1679. Na parede da porta, mas do lado de dentro, está um lavatório em pedra de feitura maneirista, que faz pensar naquele espaço das antigas boticas onde se faziam as sangrias. Serviria este lavatório para lavar os instrumentos com que se praticavam as sangrias na Botica Conventual? Ou as intervenções cirúrgicas porventura realizadas na grande Sala do Torreão? Os registos conventuais até agora estudados não nos permitem ir além da mera conjectura, no entanto não é de todo descabida se considerarmos a natureza funcional dos espaços da Enfermaria e da Botica.
Vida Conventual
A vida conventual rege-se pela prática da oração acompanhada de regras de comportamento e convivência. No século VI, São Bento fixa a regra da sua observância, a qual se vai estender a todas as comunidades religiosas, conventuais e monásticas do Ocidente. Os tempos quotidianos de oração constituem o cerne da vida em clausura: o Ofício Divino. Cada uma das celebrações litúrgicas tinha a designação da hora que lhe era própria e, na Ordem de Cristo, cumpria-se como o estipulava o regulamento dos Usos e Cerimónias:
… As Matinas se dizem de todo o ano à meia-noite (…) a Prima se dirá às cinco horas e meia da manhã, da primeira Dominga da Quaresma até à Santa Cruz de Setembro exclusive (…) a hora em que se diz imediata (a Terça), antes da missa do dia, será às 8 horas (…) a Nona se dirá da Páscoa até à Santa Cruz de Setembro exclusive, ao meio-dia (…) as Vésperas se dirão às 3 horas da Páscoa até à véspera da Cruz de Setembro (…) as Completas se dirão às 7 horas e meia da tarde, da Páscoa até à véspera da Santa Cruz de Setembro (…) em o mais tempo às 5 e meia (...) Matinas e Laudas se cantarão em as 3 Páscoas do ano (…).
Para além destes ofícios, havia as missas de sufrágio, as do calendário litúrgico e as cerimónias de habilitação de Cavaleiros e Religiosos, freires professos, noviços, irmãos conversos e beneficiados. Era o Padre Cantor Mor que tinha o encargo de organizar e distribuir as tarefas litúrgicas aos membros da comunidade. Essas ordens de serviço eram as Breves.
As ocupações da vida quotidiana da comunidade eram regidas em Capítulo ordinário semanal. Neste, se tomavam todas as decisões importantes para a comunidade e também se regulavam os diferendos entre os seus membros. Era em Capítulo que tinha lugar a recepção de novos membros, fossem eles cavaleiros, freires professos, noviços ou conversos. A habilitação na Ordem implicava o pagamento pelo neófito de um pecúlio, a Propina, que o sacristão assentava no Livro de Receita e Despesa da Sacristia e que, depois, era distribuída pela irmandade segundo a importância do cargo ou hierarquia do religioso. A comunidade relacionava-se com o mundo pela prática diária da caridade e assistência aos enfermos, necessitados, viajantes e peregrinos. Nas datas marcadas, o procurador recebia as rendas e os foros e tratava dos negócios da Ordem fora do Convento.
Os tempos em que os freires, professos e noviços, não estavam nos ofícios litúrgicos, eram considerados tempos vagos. Estes, deviam os religiosos aplicá-los nas suas obediências particulares, isto é, nas tarefas ou ofícios que lhes eram incumbidas desempenhar na vida da comunidade. Havia cargos que estavam destinados aos professos, e que eram: o procurador, o sacristão, o arqueiro (o tesoureiro), o arqueiro escrivão (o contabilista), os cartoreiros (escrivães), o porteiro, o hospedeiro, o refeitoreiro, o cerieiro (que tratava das velas para oculto), o lucernário (que tratava das candeias) e, por fim, o calceário, que tratava do calçado para a comunidade. Estas tarefas constituíam a segunda componente da vida do religioso, de acordo com a máxima de São Bento: ora e labora.
Salus Infirmorum
Salus Infirmorum é a invocação mariana que encima a janela poente do corredor da Enfermaria do Convento de Cristo. Sendo Nossa Senhora da Imaculada Conceição a padroeira da Ordem de Cristo, era corolário que também fosse invocada para trazer a saúde aos enfermos, como é designada na Ladainha da sua devoção: Saúde dos enfermos.
A construção da Enfermaria foi, desde o início do Convento da Reforma Joanina, uma preocupação na composição do novo espaço de clausura conforme é menção na encomenda régia ao arquitecto João de Castilho. Em documento conservado no A.N.T.T., sobre a encomenda de D. João III a João de Castilho da fábrica do Convento para os freires da Ordem de Cristo (1529), pode ler-se:
(…) Item mais fará treze cellas pera a enfermaria da grandura e ordenãça das outra do dormitório e os portais e janelas das dotas çelas serão da proprya grandura e ordenãça e preço das do dito dormitório.
A sua localização no Convento do século XVI já era na banda norte-nascente da cintura castreja, na vizinhança do Claustro do Cemitério e no confinamento do antigo Convento Henriquino, então demolido. A sua ligação com os novos aposentos conventuais, situados na banda poente do castelo, é feita por uma escada que vai vencer o desnível entre a base do monte e a cumeada, como relata Dom Prior Frei Pedro de Moniz, das obras que ele fez no Convento de Cristo, entre 1620 e 1629 (A.N.T.T.):
(…) Por baixo destas casas da Portaria fiz umas escadas que da claustra da Hospedaria sobem para a Infermaria e é serviço certo para esta oficina para se levar carne, peixe, lenha e hortaliça de maneira que nada vê a comunidade nem passa por ela como ordinariamente passava e só por esta serventia é para se estimar esta obra feita com tanto custo e conselho.
A construção do corpo da Enfermaria, juntamente com o da Botica, só teve a sua configuração definitiva nos finais do século XVII, de forma grandiosa, como veio a ser notada por quem visitava o convento de Tomar. Em 1714, Gaspar Leitão da Fonseca, na Rellação da passagem que elrei d. João o quinto fez pella villa de Thomar, fazia a seguinte descrição:
(…) Ficou mais para a comodidade dos Padres o dormitório das Emfermarias que na Majestade e grandeza mais parece que se fes para casa de regalo que de aflição.” Entra-sse por huma portada posta em frente de huma alegra e abrigada varanda onde o sol como Planeta mais amado da medecina vizita com benéfica assistência os convalecidos.
A Farmácia Conventual em Portugal
A farmácia conventual teve grande projeção técnico-científica e um enorme prestígio em Portugal. Eram famosas as boticas dos cónegos regrantes de Santo Agostinho, de Lisboa (S. Vicente de Fora) e Coimbra (Santa Cruz); as dos Dominicanos em Lisboa, na Batalha e em Aveiro; as dos Jesuítas, principalmente as do Colégio de Santo Antão (Lisboa) e de Goa. A Ordem de Cristo tinha uma importante botica no Real Convento de Tomar.
A ligação entre a ciência farmacêutica e o clero regular torna-se evidente em Portugal, ao constatarmos que a primeira farmacopeia escrita por um boticário português, deveu-se a D. Caetano de Santo António, cónego regrante de Santo Agostinho, boticário no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e, depois no de S. Vicente de Fora, em Lisboa. A obra intitulava-se Farmacopeia Lusitana (1704), tendo uma enorme procura para o ensino da Farmácia. Teve várias edições, acompanhando a evolução científica e divulgando logo na edição seguinte, em 1711, pela primeira vez os medicamentos químicos em Portugal.
As farmácias conventuais dispunham ainda de uma quantidade de medicamentos específicos conventuais que gozavam de muito prestígio. Exemplo disso era o Pó Jesuíta (cinchona e quina), o Pó Capuchinho (cevadilha, espora e tabaco) que ganhou uma considerável reputação como exterminador de piolhos e o Pó Cartuxo (kermes mineral) que se tornou muito estimado, pelas suas propriedades eméticas e de desobstrução.
As boticas conventuais eram muito frequentadas e a única fonte de assistência médica para os pobres, para além das misericórdias, tais como as dos Dominicanos e dos Jesuítas, e até forneciam medicamentos químicos, como os Beneditinos, os Carmelitas e os Oratorianos. Muitas detinham até monopólios no abastecimento local, ou a certos hospitais, o que constituía uma enorme fonte de receita, sendo motivo de protesto dos boticários seculares. A solução seria para os boticários laicos o encerramento das boticas conventuais abertas ao público, o que veio a suceder apenas em 1834, com a extinção das ordens religiosas.
A Ciência Farmacêutica no Barroco
A ciência farmacêutica nos séculos XVII a XVIII foi dominada essencialmente por duas teorias explicativas da doença: a iatroquímica e a iatromecânica, que preconizavam novos métodos de tratamento e novas substâncias medicamentosas.
A iatroquímica, elaborada por Paracelso (1493-1541), defendia que a doença era uma anomalia e não um desequilíbrio de humores. Esta anomalia era uma manifestação natural, logo química e deste modo teria que ser tratada quimicamente. O corpo humano foi considerado um laboratório e os seus processos químicos dependiam de uma força vital - o archaeus. Surgem então novas substâncias como tinturas, extratos, álcool, espíritos, óleos e essências e a arte da alquimia e consequentemente a química tornam-se imprescindíveis na farmácia da época.
O farmacêutico do século XVII, tornou-se assim um químico (e também um botânico) e a oficina farmacêutica transformou-se num laboratório químico, onde os processos de destilação, evaporação, incineração, sublimação e lixiviação eram postos em prática.
A iatromecânica ou iatrofísica, descoberta por Santorio (1561-1636) defendia que o corpo humano era concebido como uma máquina, estando as noções de saúde e de doença dependentes de interpretações das leis da física. Para a teoria iatromecânica, os conceitos de humor Galenista, foram substituídos pelo conceito de fibra que foi tida como o elemento fundamental do organismo.
A farmácia do barroco, resulta então do cruzamento das diversas teorias médicas, para além das doutrinas clássicas galénicas. Sendo assim, a medicação era uma mescla de métodos tradicionais como purgas, sangrias, clisteres e drogas vegetais; medicamentos químicos, vindos da iatroquímica; águas mineromedicinais; novas plantas sul-americanas como a quina e a ipecacuanha; injeções endovenosas e transfusões sanguíneas, embora com resultados pouco animadores.
Em Portugal, a obra Pharmacopeia Geral para o Reino, e Dominios de Portugal, publicada em 1794, definia quais os vasos, e instrumentos pharmaceuticos, que qualquer botica deveria possuir, para o fabrico dos medicamentos: alambiques, almofarizes, aludéis, balanças, cadinhos, caixas, coadores, colheres, cucurbitas, escumadeiras, espátulas, fornos, ou fornalhas, funis, garrafas, imprensa, limas, lutos, panellas, peneiros, pedra de prepara, e sua moleta, retortas, simples, e com tubo, tachos, tigelões e tigellas, vasos para banho da areia, e para banho de Maria.
A Farmácia em Portugal nos séculos XVII e XVIII
A medicina e a farmácia em Portugal no século XVII eram ainda muito influenciadas pelas doutrinas clássicas. A terapêutica era uma mescla de métodos tradicionais como purgas, sangrias e clisteres e os boticários que se dedicavam à preparação de medicamentos químicos, eram uma minoria, mantendo-se apegados às formas tradicionais de preparação de medicamentos de origem vegetal e a técnica operatória galénica.
A farmácia química começou a ser divulgada entre nós a partir do início do século XVII, depois da vinda para o nosso país, de químicos e destiladores do estrangeiro que se estabeleceram entre nós, produzindo e vendendo medicamentos preparados por Arte Química. Os droguistas acompanhavam o desenvolvimento da química farmacêutica, comercializando também substâncias químicas e até preparados galénicos, como a Teriaga Magna, a Água da Rainha da Hungria, o Óleo de Ouro, as Pedras Cordiais e o Xarope Violado Roxo.
Os medicamentos químicos foram popularizados na forma de remédios secretos. Os segredistas eram principalmente químicos, médicos e cirurgiões que utilizavam o segredo contra o Galenismo ainda dominante. A expansão dos remédios secretos, esteve também associada à publicidade e à possibilidade de poderem ser consumidos por automedicação, dispondo de um regimento que explicava os casos em que se aplicavam e qual a dose recomendada.
João Curvo Semedo e Jacob de Castro Sarmento fabricaram remédios secretos em larga escala, dando origem a dinastias de fabricantes e vendedores de remédios secretos. No século XIX, ainda eram populares os Segredos Curvianos e a Água de Inglaterra.
Com o Iluminismo pombalino, assiste-se finalmente às reformas, ao repúdio do galenismo da medicina Barroca e à condenação oficial dos remédios secretos. Em 1772, através da reforma pombalina dos estudos universitários, foi instituído na Universidade de Coimbra o Dispensatório Farmacêutico do novo Hospital Escolar, que se destinava ao ensino farmacêutico para a formação de boticários e dos estudantes de medicina, para além da produção de medicamentos.
No entanto, o acesso à profissão farmacêutica, realizava-se na sua maioria, mediante aprovação num exame tutelado pelo físico-mor. Este regime de estudos manteve-se até 1836.
Durante o século XVIII, publicaram-se diversas farmacopeias, mas só em 1794, Portugal teve a sua primeira farmacopeia oficial, a Pharmacopeia Geral, durante o reinado de D. Maria I. Esta obra pretendia regulamentar a produção de medicamentos e o exercício da prática farmacêutica nas boticas portuguesas. No entanto, esta farmacopeia não acompanha o progresso científico da época, não adotando a nova nomenclatura química preconizada por Lavoisier.
O Esplendor das Boticas Conventuais
A botica conventual teve o seu apogeu no final do século XVII, quando o gosto barroco influenciou decisivamente a disposição e a decoração dos armários, mostradores, potes, boiões, vasos, almofarizes, caixas de madeira, balanças e outros instrumentos. Na botica do Real Convento de Cristo, é de realçar o esplêndido conjunto de potes e boiões em faiança azul e branca, com decoração floral exuberante e o emblema da Cruz de Cristo.
Nesta época, as farmácias tinham muitas vezes tetos pintados ao resplandecente estilo barroco. Os potes eram dispostos em pequenos nichos, cada um emoldurado por um pequeno arco e delicada espiral, colunas ou saliências arredondadas. Quando os tetos eram altos e as estantes chegavam até ao teto, existiam mesmo escadas ou bancos, também eles decorados. Os gabinetes, as arcas, as estantes com prateleiras e o restante mobiliário, eram todos maravilhosamente esculpidos, por vezes dourados e faustosamente decorados.
Belas pinturas e esculturas de figuras relevantes da história da farmácia adornavam o local. Galeno, Hipócrates, Esculápio ou Higeia os deuses da medicina e farmácia respetivamente figuravam, lado a lado com São Cosme e São Damião ou os santos padroeiros das respetivas ordens religiosas.
Num elegante mostrador, em forma de altar de igreja, dispunham-se os instrumentos do boticário. Existia pelo menos um bem ornamentado almofariz em bronze, com um pilão que por vezes era tão pesado, que dispunha de um mecanismo para o aprendiz poder levantá-lo e assim desfazer as substâncias terapêuticas em pó.
A farmácia barroca, transmitia influência, elegância e um ambiente de medo e mistério. Um crocodilo empalhado ou uma enorme serpente suspensa no teto, um corno de unicórnio pendurado na parede, tudo contribuía para tornar o ambiente da farmácia conventual em algo místico e sagrado, tal como a venerável arte de curar.
Esplendor e ascetismo. Para uma história da faiança na botica
O uso da faiança na botica em Portugal permite-nos traçar um pouco da História não só deste material, mas da importância que este serviço tinha no contexto social do seu tempo. No exame para obtenção de carta de ofício de oleiro de louça branca ou malegueira, o candidato deveria executar numerosos objectos para o uso da botica, aspecto que revela a importância desta clientela no contexto dessa produção. Por outro lado, sendo dispendiosas, as peças de faiança empregues na botica revelam o grande investimento que então era feito e através das suas características estilísticas podemos definir os momentos de maior desafogo financeiro dos espaços a que se destinavam.
Se nos primeiros 60 anos do século XVII podemos observar peças requintadas com decorações a azul sobre branco, onde predominam os motivos de inspiração exótica, integrando cartelas vazias sobre as quais se pintavam os conteúdos; nos 40 anos seguintes predominam as composições contornadas a púrpura de manganês, menos cuidadas, integrando a heráldica de diversas Ordens Religiosas e tendo assinalado na própria cerâmica o conteúdo a que se destinavam os objectos. Esta prática prossegue nos primeiros 60 anos do século XVIII reduzida à cartela a decoração das peças cerâmicas destinadas à botica, permanecendo o resto do corpo em branco. Paralelamente a esta simplicidade as olarias da área de Santos, em Lisboa, criam objectos densamente preenchidos que, no caso do Convento de Cristo, indiciam pela sua numerosa presença um grande investimento feito então na sua botica. Entre a década de 1760 e 1832 (ano da extinção das Ordens Religiosas) domina no uso das boticas a produção das fábricas de faiança. Ao longo do país podemos encontrar objectos criados em diferentes centros, mas no caso do Convento de Cristo destacam-se aqueles que deverão provir da Real Fábrica de Louça, ao Rato, em Lisboa, (1767-1835) e da Fábrica de faiança do Juncal (1770-1876). Esta última é mencionada num Inventário das Oficinas do Convento de Cristo, datado de 1 de Julho de 1817, a propósito de alguns objectos que aí se encontravam e, ainda que não refira a grande colecção de vasos de farmácia com a Cruz de Cristo pintada a púrpura, a sua origem parece indesmentível assinalando um último momento de investimento na aquisição de materiais para a botica do Convento, ignorando encontrar-se já próximo o momento da sua extinção.
A Faiança da Botica do Convento de Cristo
A sumptuosidade da Botica e Enfermaria do Real Convento da Ordem de Cristo revela-se na extensão das suas áreas oficinais, na grandiosidade do corredor das enfermarias e tem o seu corolário na Sala dos Cavaleiros, mais tarde renomeada Sala da Bela Vista, cujas paredes exteriores dominam, com as fachadas da Botica a nascente, e da Enfermaria a norte, a paisagem sobre a cidade.
No entanto, o acervo que chegou até aos nossos dias é reduzido, resultando a sobrevivência das cerca de 100 peças da ação da União dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Cristo (UAMOC).
No Livro dos Inventários das Officinas, que regista os moveis, e alfayas da Sachristia, Igreja emais Officinas deste Real Convento de Thomar, aberto a 1 de Julho de 1817, contam-se, na Botica e na Enfermaria, 472 objetos, entre eles seis Farmacopeias Gerais, uma Matéria Médica de Jacob de Castro e 65 vazos aceados com a Cruz da Ordem. Porém, em 1829, ano do último arrolamento da Botica e da Enfermaria, apenas sobravam 133 objectos, incluindo cinco Farmacopeias, não existindo qualquer alusão a vasos ou outros objetos de faiança.
Com a extinção das Ordens Religiosas masculinas em Portugal, em maio de 1834, os bens móveis do Convento de Cristo serão objeto de inventariação, loteamento e posterior alienação, por venda, leilão ou transferência para diversas instituições. Contudo, em julho, no Inventário realizado não há referências ao acervo da Botica, pois apenas se visavam os objetos de culto, peças de arte e metais preciosos.
Em 1836, por Ordem Real de D. Maria II ao Governador Civil de Santarém, a botica do Convento de Cristo foi entregue à Santa Casa da Misericórdia de Tomar, (SCMT) na perspetiva da continuidade do seu uso, já que esta instituição, fundada em 1510, tinha em Tomar vários albergues, botica e hospital.
Não se encontrou a documentação régia que consubstancia esta entrega, mas a 5 de janeiro de 1840, no Livro nº 203 da SCMT, lavra-se o recibo de pagamento, da reparação de um órgão de foles portátil, no qual a Mesa da Misericórdia de Tomar insere uma declaração referindo:
(…) Este órgão foi mandado entregar conjuntamente com a Botica do extinto Convento de Christo a esta Santa e Real Caza da Misericordia por ordem de Sua Magestade transmitida ao Governador Civil de Santarem Jose da Neves Barboza no anno de mil oito centos [e] trinta e seis, e porque não appareceu no Archivo desta Santa Caza a mencionada Ordem não obstante ser publico, e attestado pelo mesmo sr Governador Civil a Verdade e existencia deste facto, para evitar duvidas de futuro, mandou a Meza fazer esta declaração (…).
O documento da relatada Ordem Real não constava no arquivo da SCMT e, provavelmente, tampouco no Arquivo do Governo Civil de Santarém, já que a Misericórdia de Tomar recorre ao testemunho público, e à honra do próprio Governador Civil, para atestar a posse do órgão e da botica. A ausência, ou inexistência, deste documento dificulta a análise do processo, já que poderia descrever os objetos que, de facto, transitaram do extinto Convento de Cristo para a SCMT e, assim, esclarecer o aparente empobrecimento da Botica do Convento, que os Inventários das Officinas retratam, entre 1817 e 1830.
Esse trânsito, entre o Convento e a SCMT, está registado no Livro nº 191 da SCMT, com documentos de receita e despesa de 1835 a 1836: Com o q[ue] se pagou aos Carpinteiros e Carreiro que// conduzirão a Botica do Convento de Christo para esta// Caza três mil duzentos e vinte reis - 3$220.
Em 1846, nos folios 11 a 18 do Livro nº 237 da SCMT, descrevem-se em detalhe Os Trastes, e louça da Botica no Inventario dos vazos, e mais objectos pertencentes á Botica da Santa Real Caza da Misericordia a cargo do Enfermeiro do hospital da mesma Manoel Joaquim Simoens. Nesse inventário, verifica-se que a cerâmica proveniente do Convento de Cristo, a estar a uso, não merece qualquer destaque.
A partir de 1918, a UAMOC, no âmbito da sua missão de estudo e salvaguarda do património da Ordem de Cristo, recolhe junto de particulares e instituições, objetos relacionados com o Convento de Cristo, para a constituição de um Museu. Na SCMT obtém quatro vasos de botica que, dado o seu estado de conservação, não tinham uso, pelo que a Mesa Administrativa da SCMT assentiu ao seu depósito no museu da UAMOC.
O restante acervo, permaneceu a uso na SCMT até 1921, data em que a UAMOC inicia negociações com a mesa da Santa Casa e adquire os frascos obtendo, assim, a incorporação definitiva de 87 vasos da antiga farmácia do convento, que permanecem à guarda do Convento de Cristo até à actualidade.