As dinâmicas de paisagem
A reconstituição de cenários do passado é essencial para a compreensão dos processos evolutivos que presidiram à formação da paisagem onde se integra Tomar, paisagem marcada pelo papel decisivo da Ordem de Cristo, gerida através de comendadores que controlavam múltiplos foreiros de propriedades e vínculos, ainda sujeitos a visitações ou fiscalizações periódicas.
Fontes manuscritas e impressas permitem tirar ilações quanto às alterações contínuas impostas a esta paisagem por fenómenos geomorfológicos e climáticos, padrões de colonização, distúrbios e processos culturais tal como indicado por Marcucci - compreende-se a mutabilidade de um território no qual a presença humana oscilou entre períodos de abundância e precariedade. No contexto estável da reconquista, marcado pela suavidade climática, pela prosperidade de quintãs e casais, pela produção e comercialização de excedentes, justificava-se a fixação da povoação ordenada na proximidade do Nabão. Povoação sujeita a eventos críticos, como as cheias que suportaram a regularização das margens do rio em tempos de D. Henrique.
Seguiu-se um período de regressão marcado pela entrada da Peste Negra em 1348, pestilência na qual morria-se quase em saúde e os que hoje estavam sãos, iam amanhã a caminho da sepultura. Suspenderam-se rotas, isolaram-se populações e abandonaram-se campos por falta de mão-de-obra. Sucede-se a instabilidade de 1383-1385. Nos séculos seguintes, num contexto marcado pelo declínio de temperaturas, expande-se a cultura da vinha e, entre epidemias e guerras, procura reativar-se a economia local. Registam-se obras na Várzea Grande e na levada que privilegiaram engenhos hidráulicos. Ampliaram-se propriedades e construíram-se edifícios nos reinados de D. Manuel I e D. João III, citando-se apenas a Ermida de Nossa Senhora da Conceição e a quinta da Granja intervencionada a instâncias de Frei António de Lisboa. Gradualmente, incorporam-se plantas provenientes das colónias nas rotinas rurais e nas produções regionais.
O terramoto de 1755 atingiu Tomar, não comprometendo a expansão da cidade. A extinção das ordens religiosas e a secularização dos bens não afetou a viabilidade das antigas propriedades rurais que transitaram para a posse de uma burguesia regional, reconhecendo-se no presente muitos dos cadastros do passado. No séc. XIX iniciam-se as companhas de florestação que se arrastam pelo seguinte com a plantação de muitas exóticas, no qual ainda vingam as campanhas dos cereais, introduzindo-se profundas alterações na paisagem. A mecanização da agricultura, a industrialização, a expansão urbana de Tomar e as múltiplas estradas das últimas décadas do séc. XX marcaram a envolvente do Real Convento de Thomar. Envolvente também descaracterizada por pragas recentes, como o escaravelho vermelho, responsável pela morte de inúmeras palmeiras tradicionais em território nacional.
Mesmo assim, ainda hoje se reconhecem na envolvente do Convento muitos dos elementos retratados na paisagem desenhada por Pier Maria Baldi que acompanhou o grão príncipe da Toscana, Cosme de Medici na viagem por Espanha e Portugal de 1668-1669: o plano de fundo no qual se destaca o Castelo e o Convento; a cerca no vale de Riba Fria, a atual mata dos Sete Montes densamente arborizada; o convento de S. Francisco, enquadrado pelo campo fronteiro; o obelisco ou padrão na Várzea Grande; o caminho ou rampa de acesso ao convento ziguezagueando pelas colinas; as linhas de água e respetivas galerias ripícolas; o núcleo urbano marcado pela torre sineira de Santa Iria; os engenhos hidráulicos com as rodas alinhadas pela levada; o terreno marginal ondulado e pontuado por árvores e arbustos, nos quais se encontravam várias plantas essenciais para uma botica.
A Paisagem
Tomar despertou o interesse de muitos viajantes que tanto enalteciam as qualidades da vila como as da paisagem envolvente. Descrições do passado denunciam as dimensões e a vitalidade económica do agregado urbano, as condições de salubridade e a proximidade do mosteiro numa escarpa próxima. Suportam, também, ilações quanto à proximidade do rio do qual dependeria a agricultura na várzea que o marginava .
... El 9 del mismo (Enero) visitamos á Tomar (villa grande) ...Tomar es una hermosa, grande y abierta villa; cerca hay en la montaña 'El Monasterio de Cristus' en que se concede la portuguesa 'Comenda del hábito de Cristo'. Está situado 'ad fluvium Nabonin' (vulgo sobre el rio Tomar)
Erich Lassota de Steblovo, mercenário às ordens do Felipe, in Viajes de Extranjeros por España y Portugal en los Siglos XV, XVI y XVII (1580-84)
A paisagem, na qual se reconhecem testemunhos do passado, nomeadamente romanos, destaca-se pela diversidade fisiográfica entre a serra da Sabacheira, de declives acentuados, a serra de Tomar, de pendentes suaves, e as várzeas, formações geológicas recentes entre unidades do Jurássico, Cretácico, e, até, do Maciço Antigo. As características climáticas são moderadas: temperatura média anual de 16.4 °C e pluviosidade média anual de 773 mm, abundante de Novembro a Março. A proteção de ventos dominantes de Norte, a exposição a nascente e os recursos hídricos distinguem climaticamente a encosta poente do Nabão.
Durante séculos as margens aluvionares de linhas de água foram ocupadas por regadios; nas encostas calcárias, de solos delgados, plantaram-se vinhas e olivais; nas cumeadas pedregosas subsistiram resíduos do Carvalhal da Zona Húmida Quente. As produções aqui obtidas, fruto de trabalho árduo de foreiros, foram processadas em lagares e atafonas, armazenadas em cubos, comercializadas até em boticas e escoadas nas feiras de Tomar, centro comercial relevante de urbanismo regrado, desde os tempos do infante D. Henrique, então administrador da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A introdução das ordens militares em Portugal, essencial na reconquista, teve subjacente a organização do território e o enquadramento civil e religioso de conquistados e colonos, exercidos através de uma hierarquia complexa, cupulada pelo mestre no caso da Ordem do Templo, substituído na Ordem de Cristo por um membro da família real, enquanto governador e administrador. As alterações à regra desta última comprometeram a estrutura tradicional que distinguia freires clérigos e cavaleiros, sem preterir retornos diretos e sem pôr em causa o estatuto de comendador, a quem eram atribuídas regalias territoriais. A comenda, benefício vitalício de origem eclesiástico, constituía uma unidade autónoma que compreendia bens contíguos e dispersos: propriedades rurais como hortas, pomares, vinhas, olivais e ferragiais de cereais; meios de armazenamento como celeiros, estrebarias, tulhas, pardieiros, palheiros e abrigos; engenhos dos quais dependeria a transformação de produtos como fornalhas, moinhos e adegas; propriedades urbanas como lojas e estalagens.
Através da comenda procurava-se garantir um rendimento a um membro da Ordem. O beneficiário ou comendador podia recorrer a regimes de emprazamento, aforamento por uma ou várias vidas. Privilegiava-se o regime de administração indireta que reduzia riscos, assegurando sob uma forma contratual, para além dos proventos em moeda e géneros, a conservação de imóveis e restantes meios de produção.
Curandeiras, ritualidades e natureza
São mulheres, reconhecidas e prestigiadas pela comunidade, herdeiras de uma tradição rural e naturalista, de um saber-fazer que se transmite oralmente através de avós, mães e tias e que instrumentaliza, empiricamente, ingredientes vegetais e animais para curar males do corpo e do espírito, dores agudas e quebrantos malditos.
A casa da minha avó ia muita gente. Até tinha fama de ser santa. Quando morreu, disseram que morreu a Santa da Ti Cândida. Muita gente chorou. Ela aprendeu com a mãe dela. Aprendi com ela. São mezinhas muito antigas, mas resultam. (Deonilde, 27-4-2106)
À flora local recorre-se para defumações (com palha de alho e alecrim) das casas, das pessoas e dos animais onde o mal pousou.
Com decocções, infusões e macerações das plantas que se colhem nos quintais, nos campos ou nas matas mais distantes curam-se as doenças, mais ou menos visíveis que, a certa altura, a todos afligem.
A recolha da flora local obedece a preceitos rígidos. Respeitam-se os ritmos biológicos das diversas espécies que se colhem no tempo certo, sempre em dias soalheiros, e se secam à sombra de forma a garantir a preservação das suas qualidades e a posterior eficácia dos tratamentos.
Preparam-se emplastros e unguentos com os quais se aliviam as dores, e o alho e o azeite são panaceias para quase todos os males: dores de dentes, picadas de bichos, pele gretada.
Os processos são lentos, quando comparados com aqueles que a medicina convencional utiliza, obrigando a um exercício de perseverança, de fé, dos pacientes.
Nos processos de cura, a gestualidade da curandeira, os ingredientes e os objectos utilizados são reforçados por palavras sagradas, orações e esconjuros que procuram assegurar o sucesso do tratamento, frequentemente repetido em número ímpar.
A minha mãe, quando precisava de fazer um chá, dizia-me para eu ir buscar três folhas de laranjeira. E se eu trouxesse mais, ela só punha três. Ou cinco. Nunca podiam ser números pares. (Luísa L., 12-4-2016)
Carne quebrada
No tratamento da carne quebrada, um mau jeito numa determinada parte do corpo, é central o recurso a uma fórmula oratória à qual se associam a água e diversos artefactos como um púcaro, uma agulha, uma linha ou um pano. Um tratamento que algumas curandeiras dizem ter eficácia até mesmo se for realizado sem a presença do paciente.
O que é que eu coso no pé de Catarina?
É carne quebrada, nervo torto ou linha desmentida?
Se é carne quebrada, Deus a solde e a queira soldar
Se é linha desmentida
Deus a leve à sua subida
Se é nervo torto
Deus o leve ao seu posto
Em louvor de Deus e da Virgem Maria
Pai Nosso e Avé Maria
Em louvor de São João
Que este mal seja são
Em louvor de Santo Eduardo
Que este mal fique curado
(Deonilde, 27-4-2016)
Tem de se dizer a oração três vezes e durante três, cinco ou sete dias. Se a pessoa vier a nossa casa, cose-se com a agulha por cima da parte que está afectada. Se a pessoa estiver longe, até pode estar em Angola, tem de se ter um pano que se coze, como quem está a dar um chuleio, com uma agulha com a linha enfiada enquanto se diz a oração. Usa-se sempre o mesmo paninho. No fim, queima-se.
(Deonilde, 27-4z2016)
A minha avó tinha sempre um pucarozinho com água ao lado da lareira. As pessoas iam lá e diziam “Olha, dei um mau jeito numa perna e tens de me cozer de carne quebrada”. Ela rezava e ela emborcava o púcaro com água quente dentro do alguidar e a água recolhia toda” (Luísa L. 12-4-2016)
Já cosi muitos pés. Os médicos dizem que é ruptura de ligamentos. A gente pega numa agulha com linha, sem nó, mas tem sempre de ser aquela agulha e aquela linha as nove vezes que se diz a oração e se faz o tratamento. Faz-se uma oração enquanto se cose em cruz com a linha e a agulha por cima do sítio que está dorido. Passa para um lado e para o outro, para cima e para baixo. Faz-se a oração uma vez por dia durante nove dias. (Eugénia, 4-4-2016
Cobrão
Para curar o cobrão (herpes zoster) talha-se ritualmente a zona afectada procurando reverter o crescimento do animal peçonhento impedindo que este junte o rabo com a cabeça, o que se crê ser fatal para o paciente. À oração e à gestualidade, que simboliza o corte do bicho, associa-se o uso de óleo de trigo que, no passado, se conseguia junto dos ferreiros. Estes, martelando na bigorna os grão de trigo obtinham um óleo escuro que era, depois, aplicado na zona afectada de modo a aliviar os sintomas. Actualmente, compra-se o óleo de trigo nas farmácias, mas permanece o recurso à oração mágica.
Queimaduras
A cal virgem, numa lógica de semelhança e configurando o princípio da magia simpática, é usada, ainda hoje, para o tratamento de queimaduras. Após ser devidamente diluída em água e depois de um longo período de repouso, serve de panaceia para as queimaduras. Guardada em velhas talhas, a água de cal é periodicamente renovada e serve aqueles que, rejeitando os tratamentos convencionais, preferem recorrer ao saber-fazer das curandeiras locais.
Anginas
O xarope de pele de cobra é, ainda hoje, usado para curar dores de garganta em adultos e crianças. Primeiro, ferve-se a pele de cobra juntamente com um pouco de água, figos, sultanas ou ameixas. Coa-se e, ao líquido resultante, junta-se a mesma quantidade de açúcar levando-se novamente ao lume para fazer um xarope.
A enxúndia de galinha, usada com o mesmo propósito, parece ter caído em desuso. Cortada aos pedacinhos e preservada em azeite ou sal, era aquecida e nela se mergulhavam tiras de papel pardo que depois se colocavam à volta da garganta e se acomodavam com um pano para abafar e tornar o tratamento mais eficaz.